Nossas Entrevistas

Psiquiatria

Tema: O tratamento de dependência química e a importância da família

Por Dr. Rogério Santos

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Olga Goulart – Hoje nós vamos falar de um assunto bastante sério, que é a dependência química. É um tema difícil, a família toda sofre, muitas vezes a rotina vira um caos, todos ficam bastante fragilizados e acabam sem conseguir enxergar a chamada ‘luz no fim do túnel’. Mas, é preciso entender que o papel da família é fundamental para a recuperação do dependente químico na busca da libertação das drogas. O que fazer para evitar o desequilíbrio emocional, como manter o controle da situação e proceder nesses casos? Para conversar conosco sobre o assunto, convidamos o doutor Rogério Santos. Doutor, explica para os nossos ouvintes o que que é a dependência química. Ela pode ser considerada uma doença?
Doutor Rogério Santos – A dependência química, sem dúvida nenhuma, é uma doença e, segundo a Organização Mundial de Saúde, é uma doença grave, crônica e fatal porque inevitavelmente levará o indivíduo a um desfecho realmente muito ruim. Doença é crônica porque começa e progride à medida que o indivíduo vai usando cada vez mais a substância de sua escolha e é uma doença porque tem sintomas que são bem descritos pelos médicos e que tem tratamento, assim como várias outras doenças crônicas, pode ser tratada, apesar de não ter cura, o tratamento é muitas vezes eficaz.

Olga Goulart – E quais são os sintomas da dependência química doutor?
Doutor Rogério Santos – De modo geral, pra gente caracterizar um paciente como dependente químico, nós temos alguns critérios a serem adotados, um deles é a chamada tolerância. É um indivíduo que começa a utilizar a substância e, com o passar do tempo, ele precisa de doses, cada vez maiores, para obter o mesmo prazer ou o mesmo efeito que no passado ele conseguia com doses mais baixas e que haja também com a abstinência, que são os sintomas que surgem toda vez que é interrompido o uso da substância. Então se o indivíduo tem tolerância, ou seja, ao longo de anos ele passou a usar cada vez mais, ele tem abstinência toda vez que tira a droga ele passa a ter sintomas físicos e psicológicos que caracterizam uma angústia, um mal estar psíquico e físico pela ausência da droga, associada a várias outras questões como gastar tempo excessivo procurando a substância, se afastar dos relacionamentos pessoais, familiares, laborais, por conta do uso ou consequência das drogas, usar a droga a despeito de saber todo o risco que está se expondo. Esse grupamento de sintomas faz com que a gente caracterize um indivíduo dependente químico.

Olga Goulart – A hereditariedade pode ser um fator determinante doutor? Quais são as causas da dependência química?
Doutor Rogério Santos – Bem, as causas são multifatoriais. Claro que a hereditariedade sempre é contemplada como um fator de risco para o uso de determinada substância. No tratamento da dependência química a gente tem um triângulo básico onde de um lado está a substância, num vértice desse triângulo, no outro vértice está o indivíduo e todas as suas angústias pessoais, emocionais, psicológicas, e na outra está o ambiente, o meio, seja esse o meio familiar, seja esse o meio social que propicia a substância. Então de modo geral, é a questão familiar pode muito influenciar, além da questão genética, existem vários estudos abordando o potencial genético de filhos de dependentes químicos terem maior probabilidade de desenvolverem dependência química, mas como também uma espécie de hereditariedade ambiental, que nada mais é do que o indivíduo que cresce no ambiente de pais dependentes químicos, além de carregar a carga genética desses pais dependentes, ele carrega consigo todo o ambiente que ele cresceu, onde a droga era usada, era permissiva, era tolerada, então além do fator genético, leva-se também o fator ambiental que os dependentes químicos que geraram e criaram esse indivíduo propiciaram a ele no seu desenvolvimento.

Olga Goulart – Doutor, tem um tempo médio de utilização das drogas para alguém se tornar um dependente?
Doutor Rogério Santos – Essa é uma crença popular, digamos assim, que na prática não é real. Muitas vezes algumas mães perguntam: “doutor, é verdade que o crack, basta usar uma vez e já está viciado?”, precisa a gente entender que a dependência química ela é uma doença progressiva, ninguém começa a usar droga hoje e se torna dependente amanhã. Essa jornada do uso de substância começa com aquele indivíduo que experimenta, não é? Então num determinado grupo é oferecido a ele e ele aceita seja por curiosidade, seja para pertencer àquele grupo naquele momento. O tempo vai passando e esse indivíduo começa a usar a substância já ocasionalmente, então toda vez que ele vai num evento que tenha a substância, toda vez que ele encontre com as pessoas que tenha a substância, ele começa a se tornar um usuário de ocasião. A continuidade disso, muitos indivíduos se tornam, deixam de ser um usuário ocasional e se torna um usuário habitual. Então esse indivíduo não precisa mais ser naquele evento, ele todo final de semana começa a usar e muitas vezes o fim de semana começa na sexta e termina no domingo, depois começa as vezes na quinta, termina na segunda de manhã, então a doença vai progredir, como se fosse uma escada que se vai subindo degrau após degrau, até que lá do meio em diante dessa escada o indivíduo já precisa da substância continuamente, toda vez que não usa, ele começa a ter sintomas. Então ele começa a fazer qualquer coisa pela doença, então não existe um tempo mínimo determinado, mas nós entendemos que a dependência química é uma doença que é progressiva, ela vai evoluindo e quanto mais o tempo passa, mais dependente aquele indivíduo vai ficando da substância.

Olga Goulart – As vezes doutor, uma pessoa usa determinada droga para ser aceita num grupo. Essa atitude é uma atitude arriscada? Uma droga funciona como porta de entrada para outras?
Doutor Rogério Santos – Bem, se nós tomarmos como base, por exemplo, o álcool que é a droga mais consumida no mundo, no Brasil sem dúvida nenhuma, nós temos em mente que o álcool está em todas as ocasiões, em todas as ocasiões sociais e/ou familiares. Quando se nasce um filho, vamos comemorar o nascimento do filho, se faz aniversário, vamos comemorar o aniversário, se morre alguém, bebe-se porque viveu-se a angústia do pesar. Então muitas vezes a droga está circulando entre nós de modo muito comum. O conceito de ser porta de entrada em si, não deve ser levado ao pé da letra, mas o que sabe-se é: indivíduos que utilizam substâncias aumentam a probabilidade de ter contatos com outras substâncias e, assim sendo, tendo contato aumenta-se as chances de se experimentar novas substâncias, mas de modo geral a droga por si só ela não é garantia que vai se usar outra, mas ela aumenta a probabilidade de se ter contato com outras drogas.

Olga Goulart – Como é o tratamento da dependência química, doutor?
Doutor Rogério Santos – O tratamento da dependência química acontece em várias etapas. É preciso que, primeiro, se avalie o paciente e se tenha uma noção de qual o estágio da doença ele está. Então obviamente estratégias usadas para indivíduos numa fase mais avançada da doença, não serão as mesmas estratégias usadas com um indivíduo no princípio da doença, mas se nós pudermos olhar de modo geral o que eu diria que é uma das principais estratégias para se tratar a dependência química ao longo de todo um processo é o processo psicológico. A psicoterapia seja ela de grupo, seja ela individual e a individual é extremamente importante, ela é uma estratégia fundamental porque os indivíduos chegam a droga pelos mais diversos motivos e o grande problema é que para sair da droga as vezes dá muito trabalho, mas inevitavelmente a droga num determinado ponto da vida do sujeito passa a ser um analgésico para algumas dores, sejam elas emocionais ou psicológicas que esse indivíduo vive e portanto é necessário que o apoio psicológico possa dar a esse indivíduo a perspectiva que a dependência está alí funcionando como uma estratégia de aliviar algo, e eu só consigo aliviar esse algo se eu for buscar qual a origem dessas dores e dessas angústias. Então o principal processo a meu ver é o processo de psicoterapia, claro que nesse meio tempo, algumas medicações podem nos ajudar, os grupos de autoajuda podem ajudar, o apoio familiar é fundamental, o tratamento do familiar é fundamental.

Olga Goulart – E existe diferença, doutor, de tratamento para adolescentes ou para adultos no caso da dependência química?
Doutor Rogério Santos – De modo geral, adolescentes tendem a estar ainda no início do processo, claro que em muitas vezes nós vemos adolescentes já com um grau de dependência química bastante avançado, bastante comprometedor, mas o tratamento ele não está na dependência da idade do sujeito e sim do grau de comprometimento que ele tem com o uso da substância. Claro que adolescentes precisam de uma abordagem, uma linguagem mais propícia a sua idade cronológica, ao seu status emocional, ao grau de amadurecimento que eles têm, para que a gente tenha, consiga falar essa linguagem, até porque o adolescente ele é muito apaixonado por tudo que se envolve, então o adolescente chega sempre com discurso de paixão pela droga e o adolescente costuma ter aquela sensação típica da onipotência do adolescente que nada vai me acontecer, que eu vou dar conta de tudo, eu vou superar tudo, então a gente precisa fazer um trabalho de conscientização muito grande com esse adolescente para que eles consigam aderir, vincular ao tratamento, porque se você usar estratégias muito invasivas a princípio, você vai tender com que o adolescente fuja do tratamento e isso é muito ruim porque ele vai acabar voltando tempos depois e já num estágio, às vezes, muito mais comprometido.

Olga Goulart – E o que que são os codependentes? Eles também precisam ser tratados?
Doutor Rogério Santos – A codependência é um termo utilizado para os familiares ou as pessoas que convivem com o dependente. O codependente é aquele indivíduo, que é popularmente dito que adoeceu dentro do processo da dependência do seu familiar, então é muito comum nós vermos mães, os pais, esposas, as vezes filhos ou filhas adoecerem tanto por conta do grau do adoecimento do dependente químico que se tornam pessoas que, em nome de um sentimento que eles acham que é amor, eles começam a se tornar permissivos demais, começam a propiciar a manutenção da drogadição, seja alimentando financeiramente a manutenção do uso, seja encobrindo os eventos que ocorrem por conta da droga, então o marido não vai ao trabalho e a esposa liga para dar uma justificativa que passou mal ou o garoto não vai a faculdade fazer a prova e a mãe arruma um atestado para poder justificar aquela falta, no fundo, no fundo eles sabem que o paciente deveria arcar com o preço da sua dependência, mas em nome do sentimento eles começam a tentar meio que limpar a bagunça que o dependente acabou fazendo e esses indivíduos acabam sofrendo muito.

Olga Goulart – Como fortalecer esses familiares, doutor, para que eles mudem esse comportamento e consigam de fato ajudar o dependente químico?
Doutor Rogério Santos – O tratamento da dependência química, como eu havia falado antes, de modo em geral tem que abordar o familiar, não há como se tratar o dependente imaginando que ele é um produto que vai entrar e sair de uma forma diferente, em qualquer estágio da doença que ele esteja. É preciso entender que essa família estando adoecida é preciso ser submetida também a estratégias terapêuticas. As  estratégias terapêuticas para tratar o familiar do dependente de modo geral passam por psicoterapias de grupo, e as vezes também individual. Existem grupos de mútua ajuda para os dependentes, mas existem também grupos de mútua ajuda para o familiar do dependente que está, as vezes, tão adoecido ou mais depauperado até do que o dependente, mas tratar a família geralmente se faz a partir de estratégias de psicoterapia onde nós podemos fazer esse indivíduo, juntamente com outros familiares que estão ou em estágio diferente do sofrimento ou já passaram por aquilo, trocam experiências e podem juntos começar a enxergar que algumas estratégias usadas por eles antes não funcionam ou perpetuam ainda mais a dependência.

Olga Goulart – Para finalizar doutor, o que fazer para evitar o desequilíbrio emocional familiar? Como manter o controle da situação e proceder nesses casos?
Doutor Rogério Santos – Essa é a pergunta mais difícil de todas porque, quando a família descobre a dependência química, essa família muitas vezes já está em grande sofrimento, em grande desarmonia, algumas outras vezes a própria desestrutura familiar, desarmonia familiar, que acabou levando o indivíduo a apelar para a substância como analgésico dessas angústias, então eu sempre diria que buscar apoio especializado, seja de médicos, de psicólogos, de terapeutas, de família, é fundamental para que nós possamos entender como está o funcionamento desta família. Não existem duas famílias iguais, então cada família tem uma dinâmica, até porque na modernidade a estrutura familiar já se tornou extremamente diferente do passado, então as dinâmicas familiares contemporâneas tornaram-se muito mais frágeis, isso faz com que a gente precise acolher essa família e entender como se dá essa dinâmica e assim sendo poder observar qual a melhor estratégia personalizada para aquele núcleo familiar, claro que no final das contas a gente precisa focar que o paciente que está nesse momento sofrendo de dependência química precisa ser tratado, mas se eu não tratar essa família eu não consigo ajudar esse paciente. Uma regra básica, que precisa ser entendida, é que a sociedade moderna tornou-se extremamente permissiva e, por conta disso, é preciso entender que o dependente químico, não diferente da maioria dos indivíduos do convívio dele, também é muito permissivo e muito refratário a organização de regras e limites e muitas vezes é preciso que essa família comece a projetar a ideia de que vai ter que mudar a forma de lidar em casa com o paciente e esse paciente tem que ser convidado a começar a lidar melhor, às vezes, com limite que é algo muito difícil para alguns deles.

Olga Goulart – Conversamos com doutor Rogério Santos, médico psiquiatra, especialista em dependência química. Doutor muito obrigada e até a próxima!